24/04/09

"CENSURICÍDIO"

Contas feitas, José Cardoso Pires chegou a um resultado tão surpreendente como inquietante. No seu livro E Agora José, publicado em 1999, o escritor contabiliza 420 anos de censura, nos cinco séculos de existência de imprensa em Portugal. E não é necessário recuar muito, no tempo, para identificarmos um dos períodos mais odiosos e obscurantistas da História portuguesa, caracterizado pela «colonização cerebral, domesticação das vontades, apartheid do conhecimento, privação do saber, mentira premeditada, terrorismo intelectual», con­forme observa o jornalista César Príncipe, no seu livro Os Segredos da Censura.
Durante os 48 anos em que se sucede­ram três ditaduras, a militar, a de Oliveira Salazar e a de Marcelo Caetano, os «coro­néis do lápis azul» - assim foram alcunha­dos os censores por, no início, terem sido chefiados por um coronel e destruírem os escritos dos jornalistas com riscos daque­la cor, antes de optarem pela caneta Bic - interpuseram-se entre os emissores das mensagens informativas e os respectivos destinatários, para alterarem, manipu­larem ou tornarem vazias de sentido as notícias que pusessem em causa o discur­so oficial. Simultaneamente, devido à sua invisibilidade, remetiam para os autores a responsabilidade dos textos que recria­vam, como nota Orlando César no artigo O Censor como Enunciador do Discurso do Regime, publicado no Notícias da Amadora, em 2001.
Nestas circunstâncias, quem conhecesse Por­tugal apenas através da leitura dos jornais acre­ditaria que vivíamos no país das maravi­lhas. É que não havia aqui prisões políticas, nem contestação do re­gime, não havia greves nem manifestações de protesto, não se traficava droga, ninguém se suicidava, nenhuma mulher se prostituía, não havia mendigos, nem bairros da lata, nem epidemias, nem delinquentes menores, nem violações, nem pedófilos, nem infanticidas, não está­vamos na cauda da Europa nos indicadores culturais, sociais e económicos, nem existia corrupção. César Príncipe comenta: «As­sim se escreve a História: a grande como a pequena. Não espanta que, só depois do 25 de Abril, certas camadas populares e peque­no-burguesas teçam pessimismos em rela­ção à liberdade. Antes ( ... ) não se assistia a esta 'pouca vergonha' de se
conhecer o que sucede.»
VISÃO, 23-04-09

19/04/09

PROBLEMA "LEGO"

Quando Jorgen Vig Knudstorp assumiu a direcção da fabricante dinamarquesa de brinquedos [Lego] em 2004, o cenário era catastrófico. As vendas caíam a olhos vistos, o custo de produção era elevado e as dívidas não paravam de aumentar. Foi neste contexto que a ReD Associates foi chamada a intervir. Composta por antropólogos, sociólogos e psicólogos, esta consultora dinamarquesa já trabalhou para empresas como a Adidas, Vodafone e Coca-Cola mas teve na Lego um dos seus maiores desafios. "A empresa tinha perdido a sua relação com as crianças", explica ao PÚBLICO Christian Madsbjerg, membro da consultora. Para perceber o que se passava, a equipa de cientistas sociais passou quatro meses a trabalhar com um grupo de 100 crianças. Falaram e brincaram com elas, acompanharam-nas na escola, estiveram em casa com a família e, no final, descobriram onde estava o problema: todas as pressuposições da Lego sobre como as crianças gostavam de brincar estavam erradas."A Lego pensava que as crianças gostavam mais de playstations, de jogos fáceis e de encontrar instantaneamente diversão nas brincadeiras", explica Christian Madsbjerg. Mas a realidade era bem diferente. "Os miúdos continuavam a gostar muito de brincadeiras físicas, de coisas difíceis e não se importavam de perder tempo a descobrir como resolver o enigma de um brinquedo", conclui. A Lego teve então de mexer nas peças do seu negócio, acabar com alguns produtos e criar outros. As crianças voltaram.

10/04/09

O SENTIDO DAS PALAVRAS

(…) as palavras da linguagem comum, tal como os conceitos que elas expri­mem, são sempre ambíguas e o seu directo emprego científico, a partir do seu uso normal, sem as submeter a nenhuma transformação, con­duziria às mais graves confusões. Não apenas o sentido dessas pala­vras está tão mal definido que varia dum caso para o outro, ao sabor das necessidades, mas ainda, visto que a classificação de que elas resultam não procede de uma análise metódica e apenas traduz as impressões confusas das pessoas, acontece permanentemente que categorias de factos muito diversos são indistintamente reunidas sob uma mesma rubrica ou que realidades da mesma natureza recebem designações muito diferentes. Se portanto se aceita a acepção vulgar, corre-se o risco de distinguir o que deve ser confundido ou de confun­dir o que deve ser distinguido, ignorando-se assim o real parentesco das coisas e, consequentemente, a respectiva natureza. Só se explica comparando. Uma investigação científica só pode, assim, atingir o seu objectivo se se refere a factos comparáveis e tem tanto mais pro­babilidades de êxito quanto mais certa esteja de reunir todos aqueles que podem ser utilmente comparados. As afinidades naturais dos seres, porém, não poderão ser detectadas com um mínimo de segu­rança através de exame superficial como aquele de que a terminolo­gia vulgar resultou; consequentemente, o objecto das pesquisas não pode ser constituído pelos grupos de factos já organizados aos quais correspondem as palavras da língua corrente.

ÉMILE DURKHEIM, O Suicídio